domingo, 14 de março de 2010

(...) e lembrar em que algum dia, por pura ingenuidade, chegou a acreditar que eram a mesma chama.
E no fim, acabar por perceber que não passava-se de um reflexo.

Não preciso mais disso, já passei dessa fase. Não preciso mais estar rodeada de pessoas fúteis, com pensamentos fúteis e atitudes ocas. Não preciso mais rir no total desespero de ter a ilusão de estar se divertindo, quando seu maior desejo era não ali estar. Pois é. Decidi. Vou livrar-me de tudo oco, fútil e falso ao meu redor, é claro, eu sei, sempre haverá. Não importa aonde ou quando, sempre tem um filha da puta e isso é fato. Com o tempo eu aprendi a conviver, a escutar coisas podres e rir comigo mesma por dentro. Ninguém precisa saber. Não é?! Pra quê? Pois bem, está decidido! Manter o máximo de distância de sentimentos, atitudes, pensamentos, conceitos ocos. Ter sempre o belo o e verdadeiro dentro de mim. Não importa. Nem que eu fique sozinha, se no final a única coisa verdadeira seja mesmo o meu amor próprio, eu aceito e assumo todas as consequências. Talvez seja melhor magoar as pessoas do que não ser inteira. Afinal, na maior parte da minha vida eu sempre dei mais do que recebi, e mesmo com o pouco recebido, eu me segurava nele, me apegava com todas as forças achando que era o merecido, mantendo o pensamento de que um dia, talvez, as coisas melhorassem. E melhoraram, não da maneira esperada. Mas melhoraram. Afinal, e eu? Eu estou aqui, cheia de planos, sentimentos, vontades e desejos. Todos com relação a mim, e só eu, somente eu, poderei realizá-los. Ninguém mais. Finalmente.
" (...) A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve terror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade. (...) "

A Menor Mulher do Mundo - Clarice Lispector